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Saúde Mental, Gênero e Sexualidade

  • Foto do escritor: carolinasoraggipsi
    carolinasoraggipsi
  • 7 de jan.
  • 9 min de leitura

Atualizado: 3 de abr.


As pessoas LGBTQIAPN+ apresentam com frequência os sentimentos de culpa, impotência, não pertencimento, ansiedades, medos, assim como crenças recorrentes de “serem erradas” e “serem inadequadas”.



Gênero e Sexualidade: o que diz a sociedade heteronormativa e binária?


No imaginário social, gênero e sexualidade são entendidas de forma binária, estática e imutável, ou seja, a partir das categorias “homem” ou “mulher”; ou mesmo “masculino” e “feminino”. Mesmo antes de um bebê nascer, o gênero já é determinado a partir das características biológicas e, ao longo do seu desenvolvimento expectativas sobre sua existência, os papeis sociais que deve cumprir e o desejo sexual pelo sexo oposto são afirmadas. Essas demarcações também acontecem em relação à identidade (ao que se “deve ser”) e aos gostos (o que se “deve gostar”), como explica Brigitte Vasallo (2022):


A normatividade parte de valores e ideias de que o certo, o normal e o saudável em termos de sexo é que cada pessoa tenha o seu senso de identidade devidamente adequado à genitália que foi destinada. Ou seja, na cultura normativa o existir tem uma conexão fundamental entre o sexo do corpo (macho ou fêmea), a identidade de gênero (ser feminino ou masculino) conforme os papeis convencionalmente estabelecidos para os machos e fêmeas, e a orientação do desejo para o sexo oposto. 


Considerando que os gostos, preferências e comportamentos são altamente influenciados pela lógica do que se “deve ser” em sociedade, “o que aprendemos desde muito cedo são normas” e não a como ser pessoas (Preciado, 2014). Em consequência, a sociedade constroi a crença de que as identidades que não correspondem ao padrão esperado são desviantes ou anormais (Barros, 2020). Ainda nessa perspectiva, a família só pode ser formada pela união de indivíduos de sexos diferentes (um homem e uma mulher), assim como o ideal para uma criança seria viver numa família composta por pai e mãe (Vasallo, 2022).


Mas, afinal, quais são as consequências desse ideal social para as crianças, adolescentes, jovens e adultos LGBTQIAPN+?


Compreendendo a diversidade: o arco-íris das existências LGBTQIAPN+ 


“Eu tinha certeza que eu era diferente e a falta de lugar que esse sentimento me causava” - Evaristo, 2023.


Contrariando a perspectiva cis-heteronormativa e a crença do determinismo biológico, a existência das pessoas LGBTQIAPN+ desvela as diversas possibilidades de existir-no-mundo e questiona o ideal social que nem todas as pessoas respondem. 

Como o ideal do que é ser “normal” para a sociedade exclui a existência de grupos e pessoas diversas, essa lógica impede a vida em sua diversidade e prejudica a construção da identidade das pessoas LGBTQIAPN+, impossibilitando que os que não correspondem ao padrão esperado tenham condições favoráveis de desenvolver seus potenciais, viver de acordo com sua personalidade e ter boa saúde mental, física e integral. 

Esse é o caso não só da população LGBTQIAPN+, mas também das demais populações marginalizadas: não brancas, com deficiência, mulheres, periféricas, faveladas e etc. Augusto Boal (2003), explica que todas as pessoas que possuem algum tipo de barreira social ou psíquica são oprimidas: “cidadãos aos quais se subtrai o direito à palavra, ao diálogo, ao seu território, à sua livre expressão, à sua liberdade de escolha”. Gení Nuñes (2023) e Mongelli et al. (2019) também afirmam que o sofrimento vivenciado por grupos subalternizados não vem de sua própria vivência, mas do preconceito e discriminação da sociedade dominante.

Quando as discriminações não se manifestam de forma explícita e violenta, a LGBTfobia velada acontece nas relações mais íntimas (Brasil, 2012), por meio de rejeições, desrespeitos, injustiças e desigualdades, sendo as segregações cotidianas parte das experiências da população LGBTQIAPN+. 

No contexto brasileiro, por exemplo, a população LGBTQIAPN+ é popularmente reduzida ao erotismo e à sensualidade, ou mesmo ao pecado e a doença. Muitas pessoas que desejam pares não convencionais acabam contendo suas manifestações de afeto e ocultam as relações amorosas que vivem, sob o risco de perdas materiais e afetivas, desprezo, chantagem e agressão

Tendo em vista que a sexualidade se tornou alvo de regulação de condutas e exercício de poder, sendo convertida em fonte de estigma, sofrimento e opressão (Simões, J. e Facchini, R. 2009), ignora-se que a sexualidade é ampla e diversificada, um verdadeiro arco-íris de possibilidades e existências. 


A LGBTfobia e os prejuízos em Saúde Mental


 “Nossa expressão de gênero é policiada por nossos pais, irmãos, amigos, parentes, membros da comunidade e estranhos, mesmo bem antes de nos conscientizarmos de nossa própria orientação sexual ou identidade de gênero, e desde cedo muitos de nós aprendemos e internalizamos que há algo sobre nós que precisa ser silenciado, ocultado ou mesmo “corrigido” - ILGA World, 2020. 


Considerando que as discriminações de gênero geram o encobrimento, a fragilização e a invisibilização dos corpos que são diferentes do padrão esperado, não há como negar os prejuízos à saúde mental das pessoas LGBTQIAPN+. 

As violências de gênero ou LGBTfobias ocorrem desde os primeiros anos de vida nos diversos contextos, por exemplo, no abandono afetivo de crianças dissidentes¹ de gênero, no uso de termos pejorativos que naturalizam preconceitos, na banalização do que a pessoa LGBTQIAPN+ sente, nas regras institucionais que não incluem a diversidade e também no referenciamento de todas as pessoas como se fossem cisgêneras. Nesse contexto, fica-se “dentro do armário” de forma a sobreviver, pois, torna-se necessário esconder para estar no mundo (Leite, 2022; Simões; Facchini. 2009). 

Percebe-se que o estresse de minorias que a população LGBTQIAPN+ sofre é composto por estressores específicos além dos estressores cotidianos e têm como consequência o aumento da vulnerabilidade social, níveis elevados de depressão, ideação suicida e suicídio. 

No acompanhamento psicológico de pessoas LGBTQIAPN+ é notório os sentimentos de culpa e inadequação, impotência, não pertencimento, vergonhas, medos, dificuldades nos relacionamentos e convívio social, sintomas de ansiedade, depressão, automutilação, até ideação suicida e tentativa de suicídio. A preocupação constante com a maneira de estar em sociedade gera hipervigilância das próprias expressões e comportamentos, e ainda contribui para o afastamento das próprias vontades, a evitação dos próprios sentimentos, emoções, pensamentos e desejos de forma a atender as expectativas da sociedade dominante (Vassallo, 2022). 

Em consequência, as pessoas LGBTQIAPN+ abdicam de experiências novas, de viver espontaneamente, de maneira criativa e prazerosa. Essas dores vividas tão recorrentemente mantêm as pessoas dissidentes em seu “calabouço particular”, reprimindo identificações, gerando conflitos psíquicos e dificultando a afirmação da própria identidade. A repetição desses recursos defensivos gera isolamento, prejuízos no sono, enrijecimento, neuroses, psicoses e outros adoecimentos. Nesse processo, a formação da identidade das pessoas LGBTQIAPN+ são prejudicadas pela ocorrência constante da aniquilação e alienação de partes de si (Barros, 2012).


Sexualidade e gênero: o que dizem as pesquisas atuais?


Apesar do esforço científico de apontar causalidades para a diversidade sexual e de gênero, numa tentativa de explicar sua suposta “anormalidade”, não há nenhum estudo conclusivo que afirme a determinação biológica da identidade e do comportamento sexual, ou mesmo da orientação do desejo. Além disso, não existem estudos que consigam afirmar que a orientação e a identidade sexual são fixas ao longo da vida. Ao contrário disso, as pesquisas demonstram que as possíveis conexões entre o desejo, o comportamento sexual e o modo como uma pessoa se percebe são fruto de convenções, contingências e constrangimentos sociais (Butler, 2012; Nuñes, 2023;  Simões; Facchini. 2009). 

Atualmente é um consenso de que gênero e sexualidade não são binários, e sim múltiplos e diversos. A transgeneridade questiona a visão binária de gênero e amplia as possibilidades de ser e existir-no-mundo. Ainda entre as pessoas não binárias, existem aquelas que desistem dos gêneros, por não haver possibilidade de se reconhecer nem na categoria homem e nem na categoria mulher (Butler, 2012). 

Gênero e sexualidade atravessam fronteiras, sendo compostos por ambiguidades, ambivalências e passagens ao invés de definições e fronteiras pré determinadas. Para Alfred Kinsey (1975) a sexualidade humana não se refere a categorias demarcadas, mas a um gradiente contínuo composta por uma gama ampla de matizes comportamentais. Essa característica de um continuum é explicada por pesquisa realizada no território norte-americano, em que as populações pré-coloniais descrevem a existência de pelo menos cinco gêneros, onde a perspectiva binária não havia sido imposto até a chegada dos colonizadores (Indian Country Today, 2019)

A LGBTfobia causa efeitos negativos sobre o bem-estar, a qualidade de vida e a saúde dos adolescentes, além de gerar sofrimento psíquico. De acordo com um levantamento nacional sobre a saúde mental e pessoas LGBTIAPN+, realizado pelo Trevor Project, os jovens apresentam significativamente taxas mais altas de ansiedade (83%) e depressão (73%), tendo apresentado ideação suicida (60%) ou tentativa de suicídio no ano passado (22%). Além disso, a pesquisa nacional sobre o ambiente educacional no Brasil realizada em 2016 afirma que os estudantes LGBTI+ sofrem agressão verbal (73%), física (36%), e sentem-se inseguros/as na escola no último ano por serem LGBTI+ (Brasil, 2024).

O Conselho Federal de Psicologia reconheceu a responsabilidade dos profissionais de psicologia no combate ao preconceito e à LGBTfobia e estabeleceu a Resolução CFP N° 01/99 com normas de atuação em relação às questões de orientação sexual. A resolução veta qualquer tentativa de intervenção que busque patologizar as identidades LGBTQIAPN+ e afirma o compromisso com a diversidade: 


“a psicologia pode e deve contribuir com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da sexualidade, permitindo a superação de preconceitos e discriminações”.


Psicóloga Carolina Soraggi celebrando a diversidade ao lado da bandeira LGBTI+
Psicóloga Carolina sentada ao lado da bandeira LGBTI+ que se encontra estendida em uma mesa

Qual o papel da psicoterapia frente às experiências das pessoas LGBTQIAPN+?

 

A psicoterapia é um espaço seguro de experimentação e suporte em que a psicoterapeuta facilita a ampliação da consciência sobre o campo vivido da pessoa atendida. O setting terapêutico se torna espaço-tempo de criação e autoconhecimento, gerando novas regulações no organismo humano e possibilitando a saúde integral e um existir autêntico (Leite, 2022).

Para a pessoa atendida propõe-se arriscar, desconstruir preconceitos, rever as crenças construídas ao longo da vida (PHG, 1997/51). Deixando para trás modelos rígidos de como se “deve ser” e abrindo espaço para a curiosidade diante do novo: a novidade de se auto descobrir! 

A psicoterapia atual convida a pessoa a sair do lugar intrapsíquico para estar em relação com o mundo, ou seja considera que o sofrimento não é individualizado, mas acontece na relação com outras pessoas. Coloca em análise o fundo histórico e atualiza os discursos de verdade, contribuindo para a transformação pessoal em um tempo em que as subjetividades são demarcadas por normas de poder. Assim, direciona para novos horizontes de futuro e para a liberdade de ser e vir a ser. 

Considerando que nossa subjetividade é formada por meio das relações, a psicoterapia trabalha o fortalecimento consigo mesmo considerando os espaços coletivos que a pessoa ocupa. Facilita a construção e afirmação da identidade, dos sonhos, memória pessoal e social; amplia a percepção sobre as possibilidades e potencialidades da pessoa atendida; auxilia a reconhecer novos caminhos para percorrer, novas formas de viver num mundo opressivo; contribui com o desenvolvimento de novos recursos e possibilidades; incentiva o movimento, a fluidez e flexibilidade; recria, convoca à transformação por meio da descoberta das próprias potências anteriormente acobertadas. 

Ao desnaturalizar as categorias de gênero e sexualidade anteriormente impostas, ocorre a consciência de si, a assimilação criativa (do diferente) que gera autenticidade, ou seja, uma nova forma de viver coerente com os próprios desejos e sentidos de vida. Assim, a mudança individual repercute no campo, gerando crescimento individual e coletivo!


A psicoterapia é um espaço seguro para desconstruir os padrões impostos, fortalecer as identidades respeitando a diversidade e desvendar as potências únicas de cada pessoa. Entre em contato para saber mais clicando no botão abaixo!



¹Dissidente: pessoas que não respondem às normas sociais, sendo excluídas socialmente.


Referências


Barros, P. Experiências em Gestalt-terapia diante do sofrimento LGBTQIA+. Em Enfrenta crises e fechando Gestalten. Organização Lilian Frazão e Karina Fukumitsu. São Paulo: Summus, 2020.

Barros, P. Para quem me abro na clínica gestática? Um encontro com corpos LGBTQIAPN+.

Boal, A. O teatro como arte marcial. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.

Brasil. Amar não é doença: ame quem você é, ame quem você quiser. Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados (CDHMIR), 2024.

Butler, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

Campbell, T., Rodgers, Y. V. M. Conversion therapy, suicidality, and running away: An analysis of transgender youth in the U.S. J Health Econ., 2023 May; 89:102750. doi: 10.1016/j.jhealeco.2023.102750. Epub 2023 Mar 17. PMID: 36963209.

Conselho Federal de Psicologia. RESOLUÇÃO CFP N° 001/99 DE 22 DE MARÇO DE 1999.

Evaristo, C. Insubmissa Lágrima de Mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2023.

Indian Country Today. A Compilation of Stories, 2019.

ILGA World: Lucas Ramon Mendos. Curbing Deception: A world survey on legal regulation of so-called “conversion therapies.” Geneva: ILGA World, 2020.

Kinsey, A., et al. Sexual Behaviour in the Human Male. Bloomington: Indiana University Press, 1975.

Leite, K. A impossibilidade de neutralidade na clínica gestaltica: por uma gestalt-terapia contranormativa. Em Alvim, M.; Barros, P.; Alencar, S.; Brito, V. (Orgs.). Porto Alegre: Editora Fi, 2022.

Meyer, I. H. Resilience in the study of minority stress and health of sexual and gender minorities. Psychology of Sexual Orientation and Gender Diversity, 2(3), 209-213, 2015. https://doi.org/10.1037/sgd0000132

Nuñes, G. Descolonizando afetos: experimentações sobre outras formas de amar. São Paulo: Planeta do Brasil, 2023.

Perls, F., Hefferline, R., Goodman, P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.

Preciado, B. Manifesto contrassexual. São Paulo: Edições, 2014.

Santos, L. C., Rocha, S. A performance de gênero em Gestalt terapia. Em Situações clínicas em Gestalt terapia. Frazão, L.; Fukumitsu, K. (Orgs.). São Paulo: Summus, 2019.

Schillings, A. A violência no contexto intrafamiliar e social: um olhar da Gestalt terapia às vivências opressivas. Sampa GT: Revista de Psicologia do Instituto Gestalt de São Paulo, São Paulo, n. 6, 2010/2011, p. 45-51.

Simões, J., Facchini, R. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT, 2009.

Vassallo, B. Desafio poliamoroso: por uma nova política dos afetos. São Paulo: Elefante, 2022.

Yontef, G. Processo, diálogo e awareness. São Paulo: Summus, 1998.








 
 
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